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Imunidade de rebanho, a ponta do iceberg e as vacinas, escreve Osmar Terra


Imunidade virá antes da vacina, Bloqueio não interfere no contágio.

"Devemos trabalhar com foco nos cuidados individuais e higienização, na máxima proteção aos grupos de risco, na garantia do atendimento hospitalar, e na normalização da vida econômica, defende Osmar Terra"

andemias e epidemias são uma força da natureza. Um novo vírus, quanto mais contagioso, mais se propaga, sem respeitar quarentenas horizontais e lockdowns. Ele só será contido por outro poderoso fenômeno da natureza: a imunidade coletiva ou de rebanho.

Tive oportunidade de coordenar ou acompanhar o enfrentamento a várias epidemias. Entre elas, a primeira da dengue, no Rio Grande do Sul, em 2007; a pandemia do H1N1, também no RS, em 2009; e a epidemia do vírus da zika, no Nordeste, em 2015. Esses surtos tinham em comum o fato de que não existiam vacinas para controlá-los. Aliás, todas as pandemias, por serem causadas por novos vírus, chegam ao fim antes que vacinas consigam ser desenvolvidas e utilizadas em grande escala.

Em 2015, fiquei consternado com o nascimento de milhares de crianças com lesões neurológicas graves e microcefalia, causadas pelo vírus da zika. Qual não foi a minha surpresa quando o número de casos caiu abruptamente e a epidemia cessou.

O que ocorreu foi um contágio altíssimo e silencioso pelo vírus, onde acontecia o surto, que contaminou e imunizou a maioria das mulheres em idade fértil, protegendo suas gestações futuras. Assim funciona, de uma maneira surpreendente, a imunidade humana. E graças a isso a nossa espécie existe até hoje.

Todos os surtos epidêmicos levam a um contágio grande, num curto período de tempo. Com isso, aumenta rapidamente o número de pessoas infectadas, curadas e imunizadas, como se fizessem uma vacina natural, mais potente que as produzidas em laboratórios. E é o aumento dessa imunidade que derruba a contaminação e finaliza o surto.

Conforme a proporção de pessoas afetadas vai sendo desenhada uma curva que sobe rápido no início, chega a um pico, quando o vírus já encontra muitas pessoas imunizadas, e começa a cair rápido quando a proporção delas chega a 60%, 70% ou até mais de 80%, conforme a velocidade de contágio das cepas virais.

Ainda há outro fator a considerar: as mutações do vírus no curso da pandemia. Elas fazem surgir novas cepas virais que tendem a aumentar a velocidade de contágio. O vírus alterado passa a comandar a contaminação, substituindo a forma anterior. Acontece, assim, uma espécie de revezamento, onde uma cepa viral mais rápida supera as outras e leva adiante o surto, elevando o percentual de pessoas contaminadas necessário para terminá-lo. É isso que vemos hoje no mundo.

Em muitos lugares do planeta, em particular no Brasil, a imunidade de rebanho chegou a iniciar quando predominavam cepas “mais lentas”. Foi o que ocorreu no Rio de Janeiro, de maio a junho de 2020, e no Amazonas, de agosto a dezembro. Mas as novas cepas, mais infectantes, surgiram e levantaram o número de contaminados, indo atrás da população ainda não atingida, como ocorre agora no Rio Grande do Sul. Por isso o sobe e desce das curvas de contaminação, que mostram essa imunidade se formando e, logo, sendo “adiada” pelo contágio maior das novas cepas.

Para estimar o percentual da população contaminada, é bom lembrar que seu número é muito maior que o divulgado em boletins oficiais, que mostram só até onde chegam os testes disponíveis. Mostram, na verdade, a “ponta do iceberg”. O cálculo mais próximo da realidade é feito pela letalidade média no mundo. Isto é, o número de pessoas que se contaminam para o número de pessoas que vêm, infelizmente, a falecer.

Essa proporção, apurada pelo pesquisador John Ioannidis, da Universidade de Stanford (EUA), é de 10.000 contaminados para cada 27 óbitos (0,27%). Assim devemos ter, no Brasil, nove vezes mais pessoas contaminadas (e imunizadas), que o publicado. Somando esse número elevado à quantidade de pessoas que são imunes naturalmente ao coronavírus, veremos que, em pouco tempo, poderemos chegar à imunidade de rebanho.

A reinfecção até agora tem sido num número pequeno de casos, e que não altera a tendência para o fim do surto. Esse é o paradoxo da pandemia. O aumento rápido e assustador de casos também nos leva mais rápido para a imunidade de rebanho, que acontecerá abruptamente.

Quando falamos em imunidade coletiva ou de rebanho, não estamos propondo uma estratégia. Estamos fazendo uma constatação de como evoluem todas as epidemias, sejam elas grandes pandemias ou surtos gripais de inverno. Temos que compreendê-la para não perder tempo, e vidas, em ações pirotécnicas sem efetividade para a proteção da população. As restrições e lockdowns, que subestimaram o poder de contágio do vírus, não impediram as 250 mil mortes ocorridas, até agora, no Brasil.

Os maiores epidemiologistas de Harvard, Stanford e Oxford redigiram, em outubro, a “Declaração de Great Barrington”. O documento propõe um caminho sem isolamento generalizado e sem lockdown, chamado de “proteção focalizada”, para conter a pandemia. Trata-se de uma abordagem mais compassiva, que equilibra riscos e benefícios para alcançar a imunidade de rebanho, garantindo uma proteção maior ao grupo de risco.

A imunidade de rebanho não tem contradição com aquela provocada pela vacinação. A diferença é que as vacinas laboratoriais demoram mais tempo para fazer efeito, porque são feitas com o vírus inativado e exigem uma operação gigantesca de testagem, produção e execução, numa escala colossal. É bem provável que muito antes de as vacinas serem efetivas contra a infecção já veremos o surto epidêmico sendo encerrado pela imunidade de rebanho.

Diante do inevitável curso da pandemia, devemos trabalhar com foco nos cuidados individuais e higienização, na máxima proteção aos grupos de risco, na garantia do atendimento hospitalar, e na normalização da vida econômica, porque seu bloqueio nunca interferiu no contágio, nem mostrou eficácia para salvar vidas.



Fonte: Rádio Tropical FM