O ministro Marco Aurélio Mello negou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) feita pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), no Supremo Tribunal Federal (STF), contra os decretos dos governos do Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul, que endurecem as restrições de circulação de pessoas para frear a pandemia da Covid-19.
Na opinião do presidente, os decretos afrontam a Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica e subtraem “parcela importante do direito fundamental das pessoas à locomoção, mesmo sem que houvessem sido exauridas outras alternativas menos gravosas de controle sanitário”.
Bolsonaro também queria que o STF exigisse a aprovação de leis locais, acordadas pelo Poder Legislativo, para determinar o fechamento de serviços não essenciais, não podendo ser determinadas unicamente por decretos dos governadores.
Já o argumento do ministro Marco Aurélio Mello para não aceitar a ADI é que a ação de Bolsonaro foi proposta e assinada somente por ele, e não tem a assinatura da Advocacia Geral da União (AGU) ou de qualquer advogado.
A equipe de reportagem do portal Brasil61.com foi atrás de juristas renomados para entender os dois lados dessa situação.
Legitimidade ativa
Para o jurista e professor Lenio Streck, Jair Bolsonaro não poderia entrar sozinho com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade. Em seu entendimento como jurista, quem deveria assinar a ADI é a Advocacia Geral da União.
Para o professor de Direito Constitucional da PUC/SP, Pedro Estevam Serrano, o presidente tem legitimidade ativa para propor uma ADI em nome próprio, sem precisar de assinatura da AGU – o que está garantido no Artigo 103 da Constituição Federal.
No entanto, Bolsonaro não possui a chamada capacidade postulatória, ou seja, competência de entrar com uma ADI, sem um advogado para ir a juízo.
“Existem os [juristas] que entendem que o presidente da República, além da legitimidade ativa, tem também uma capacidade postulatória especial. Eu não vejo base constitucional para isso, nem legal. Fica valendo a função e a profissão de advogado prevista constitucionalmente”, explica o professor.
Já no entendimento jurídico do professor de Direito Constitucional do IBMEC/DF, Thiago Sorrentino, o presidente da República é considerado o que se chama de legitimado universal.
“Ele poderia questionar a validade de qualquer norma jurídica perante a Constituição, desde que fosse uma violação direta. Por isso que até a decisão do ministro Marco Aurélio, se entendia que o presidente da República não precisava ter a assinatura da AGU”. Segundo o jurista, o entendimento do ministro poderá ser questionado ou sofrer uma mutação.
O professor afirma que mesmo que fosse suprida a falta da assinatura da AGU ou de um advogado, seria necessário avaliar outros requisitos.
“Não é só a assinatura das partes, a legitimidade e a capacidade postulatória. Nada garante que suprimido esse erro, você teria essa ação examinada pelo Judiciário”, explica.
No entendimento jurídico de Saul Tourinho Leal, advogado constitucionalista, a Constituição Federal concede ao Presidente da República a legitimidade ativa, mas o STF fez um recorte a essa definição.
“Certamente se essa ação tivesse superado esse óbice formal, quanto ao julgamento de mérito, poderia ter havido algum outro tipo de resposta do Supremo Tribunal Federal”, avalia.
Decisão dos governadores
Em nota, o governo do Distrito Federal (GDF) afirma que tomou a decisão de iniciar o toque de recolher, conforme o Decreto nº 41.874/2021, para diminuir o índice de transmissão do coronavírus no DF e, consequentemente, a superlotação das UTIs.
O GDF esclarece que todas as medidas tomadas para o combate ao coronavírus são baseadas em avaliações de especialistas, critérios científicos e dados técnicos. A situação é monitorada pelo governo todos os dias, em tempo real.
Sobre o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, o GDF não quis se manifestar.
Em sua decisão, o ministro Marco Aurélio não entrou no mérito do conteúdo da ADI, mas o professor Pedro Estevam Serrano o avalia como inconstitucional.
“Os governadores estabelecem restrições ao direito de ir e vir, não com base no exercício autoritário do poder político, mas com fundamento na necessidade de garantir os direitos à vida e à saúde, que precedem à liberdade. Ninguém exerce a liberdade de ir e vir estando morto e doente”, comenta.
O jurista esclarece que as restrições ao direito de ir e vir, por questões de saúde, já aconteciam rotineiramente, mesmo antes da pandemia da Covid-19 – a exemplo das fronteiras internacionais, que colocam viajantes, com suspeita de doença infectocontagiosa, em quarentena. A pandemia da Covid-19 ampliou essa prática para situações do cotidiano.
O jurista e professor Lenio Streck também concorda que o teor da ADI não deveria ser aprovado pelo STF.
“O mérito dessa ação não tem qualquer chance. O Supremo já decidiu – e que bom que já decidiu – que os estados e os municípios podem decretar medidas restritivas para defender a saúde”, comenta.
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O professor Thiago Sorrentino explica que o teor da ADI questiona se dentro de um momento de crise, como a pandemia – não caracterizado como estado de sítio ou de guerra – esse tipo de restrição poderia ser determinada. E se for possível determiná-la, poderia ser determinada por alguém que não fosse presidente da República?
Em relação aos decretos municipais e estaduais, o professor Thiago Sorrentio ressalta a legislação federal que estabelece uma série de medidas que podem ser tomadas para o combate à pandemia.
“A pergunta que deve ser respondida é se essa medida de restrição de ir e vir, ou do exercício de atividade profissional, está prevista na legislação de regência, ou seja, na lei federal, que prevê quais são os mecanismos que eu posso utilizar para tentar combater a crise sanitária”, avalia.
Para o jurista Saul Tourinho Leal, os governadores não precisam consultar o Poder Legislativo toda vez que precisar tomar uma decisão urgente para garantir a segurança da população.
“Há uma competência executiva derivada diretamente da Constituição para manejar ações em casos de calamidade, sem necessariamente precisar passar pelo Poder Legislativo, a cada momento que [precise decretar] uma medida urgente e indispensável à manutenção da incolumidade das pessoas”, avalia.
No entanto, ele ressalta que os decretos devem ser feitos com base em dados objetivos e verificáveis, além da necessidade de haver uma interlocução com a população.
Segundo o professor, o sistema jurídico brasileiro não estava preparado para lidar com essa emergência sanitária. Nunca se imaginou que o país pudesse enfrentar uma situação, que não fosse de guerra ou de sítio, que pudesse colocar as pessoas em situação de risco. Ele avalia que isso, muito provavelmente, será levado em consideração no STF e em outros órgãos jurídicos.