Marcado pela morte violenta do pai e pela pobreza enfrentada por sua família, Lauro teve sua vida ressignificada por um projeto educacional e uma professora disposta a ajudá-lo
Por Valéria Propato
Na manhã de 27 de janeiro de 2015, Lauro, então com nove anos, assistiu no noticiário da tevê à morte do pai. Sem contar nada para a família, Givaldo Pereira da Cruz, 52 anos, e mais três colegas tentaram assaltar um carro-forte. Arremessaram duas bombas para explodir os lacres dos malotes de dinheiro. Os seguranças reagiram, houve tiroteio e Givaldo foi atingido por duas balas. Lauro relembra a história com frieza, mas um leve tremor na voz ao dizer: “meu pai morreu”. Não chorou naquele dia. Para que a mãe, Zenilda, 45 anos, que ameaçou suicidar-se com remédios, “não chorasse em dobro”. O filho também teve seu inferno particular. Sozinho no quarto, o pensamento de acabar com a própria vida não saía da cabeça. “Eu fiquei com a sensação de que a culpa daquilo tudo era minha, de que meu pai tinha morrido porque eu pedi a ele uma bicicleta. E ele fez aquela coisa ruim pra conseguir”.
Givaldo já havia assaltado outro carro-forte e passara vinte anos preso. Depois que ele morreu, Zenilda e os seis filhos venderam os móveis para sobreviver. O barraco em que viviam desabou com as chuvas e os Cruz mudaram-se para um imóvel do programa Minha Casa Minha Vida, na favela Bate Facho, no bairro popular Boca do Rio, na orla de Salvador. O sustento vem do benefício do Bolsa Família e de doações. De madrugada, Lauro também ajuda a mãe a fazer lanches para vender na rua. O menino permaneceu analfabeto até os onze anos, mesmo frequentando a escola. Repetiu o 2º e o 3º anos na rede pública e acreditou que era burro. “Eu tentava focar nos estudos, mas alguma coisa não encaixava”, conta.
Foram os programas de alfabetização e aceleração do aprendizado*, adotados na escola municipal Julieta Calmon, na Boca do Rio, que devolveram a autoestima ao garoto de corpo afilado e cara de doutor, olhar sério por trás dos óculos de aro preto, um dente que nasceu no lugar errado e que dá graça ao riso carnoso e envergonhado. Ao evoluir nos estudos, Lauro ressignificou a tragédia familiar. Há felicidade no mundo. O recém-falecido escritor Amós Oz, militante da paz entre árabes e israelenses, diz em um de seus livros que o sofrimento não é o oposto da felicidade, e sim “a saída estreita da qual passamos encurvados, arrastando-nos entre urtigas, à procura da clareira na floresta silenciosa banhada pelo luar de prata”. Oz pode ser um autor que Lauro goste de ler no futuro.
O menino baiano colocou-se o desafio de ler e escrever porque via a professora atrasar a aula para alfabetizá-lo. Além do mais, havia na turma quem chegasse com mais fome do que Lauro. Se os outros aprendiam, ele também podia. Tomou gosto em fazer contas e ficou fascinado pela porcentagem. Passou a calcular os descontos oferecidos nas lojas para uma bicicleta com pagamento à vista. Ainda não desistiu dela.
Hoje com doze anos, Lauro transformou a dor em filosofia. “Um dia um leão ficou preso numa armadilha na floresta e um camundongo conseguiu ruir a corda para soltar ele. O leão nunca mais viu o camundongo como impotente. A força não vem do tamanho, a força vem de onde menos se espera”. A vida não andou do jeito que Lauro queria. Mas ele está dando seu jeito. Quer se formar advogado ou administrador de empresas, enquanto muitos amigos na favela abandonaram os estudos para entrar no tráfico.
Com os livros, descobriu a capacidade de superar a sua imanência. Não é isso a filosofia? “Não sei como ainda acontece discriminação porque o Brasil é uma mistura de raças. As pessoas não aceitam a realidade do seu corpo e do outro. O lanche da escola é feito com alimentos que têm o custo mais barato. Pintam o chão e não melhoram o ensino, que faz a gente crescer. Meu bairro não tem quadra de esportes e as traves do campinho de futebol sumiram.” Assim, sem fôlego, Lauro agora presta atenção à sua volta. Ergue os ombros e a cabeça para dizer que quer reformar a escola, o bairro, a cidade, o país e o mundo. “Reformar não é só mudar o ambiente, é mudar nosso jeito de pensar”.
Por trás de Lauro, há uma professora. “Ela é meu amuleto da sorte, me conduz e sabe o valor que eu tenho”, diz o menino, emocionado. Leonísia da Rocha, 35 anos, pilotou uma turma de quinze crianças repetentes, entre 12 e 14 anos, algumas sem sequer reconhecer as cores. Nas famílias, havia casos de prostituição, espancamento, alcoolismo, uso de drogas, homicídios e violência de gênero. Na escola rodeada por favelas, os alunos de Leonísia tinham aprendido apenas a emudecer. “A pessoa tem que ter fibra. Ou eu abraçava aquela turma ou deixava de lado”, resume a educadora. Além de ensinar, foi psicóloga, médica, mediadora de conflitos e merendeira. Quando só tinha mingau e biscoito na Julieta Calmon, Leonísia levava comida de casa para os estudantes. Quando o menino urinou pus, ligou para dar uma bronca na mãe. Convocou pais que nunca tinham dado as caras na escola. Deu à turma esperança.
Em 2018, 14 alunos de Leonísia foram “acelerados” e aprovados para os 6º e 7º anos, muitas vezes exigindo que a professora confrontasse a escola. “A rede pública é muito limitada porque os profissionais são efetivos e se acomodam. E o ensino tem que ser diversificado. Se não dá certo de um jeito, tem que fazer de outro. A escola por exemplo nunca teve feira de ciência. Eu consegui montar uma com os alunos pela primeira vez e disseram que não podia, que ia ocupar o pátio, ia sair da rotina….”, relata.
Com salário de R$ 3 mil como professora pós-graduada em gramática e direito – o mesmo que ganha uma diarista nos centros urbanos -, Leonísia se prepara para fazer a prova da Ordem dos Advogados do Brasil. Deu entrada no parcelamento de um Agile usado, da Chevrolet, seu primeiro carro, mas agora só anda de ônibus. O marido, professor de educação física desempregado, pegou o Agile emprestado para trabalhar como motorista de Uber.
Leonísia ainda estava na barriga da mãe quando o pai abandou a família de seis filhos. Já passou fome, catou resto de feira para comer, vendeu pipoca e queijo na praia para ajudar a mãe que, por sua vez, vendia acarajé. Entre os alunos, a professora que também estudou em escola pública “é nóis, é beco, é favela”. “E hoje estou aqui. Abracem a oportunidade porque está na hora de vocês”, diz ela. Leonísia inscreveu Lauro em um programa de bolsa de estudos e ele foi aprovado. Em 2019, ele irá cursar uma escola particular de Salvador. “A farda eu dou. Agora estou cobrando da mãe para correr atrás de quem banque os livros”. Tarefa cumprida.
*Programas Se Liga e Acelera Brasil, implementados pelo Instituto Ayrton Senna em parceria com o Instituto Neoenergia e a rede municipal de Salvador, Bahia.
Fonte: Observatório do Terceiro Setor
Lauro Pereira da Cruz. Crédito da imagem: professora Leonísia da Rocha/ Divulgação |
Por Valéria Propato
Na manhã de 27 de janeiro de 2015, Lauro, então com nove anos, assistiu no noticiário da tevê à morte do pai. Sem contar nada para a família, Givaldo Pereira da Cruz, 52 anos, e mais três colegas tentaram assaltar um carro-forte. Arremessaram duas bombas para explodir os lacres dos malotes de dinheiro. Os seguranças reagiram, houve tiroteio e Givaldo foi atingido por duas balas. Lauro relembra a história com frieza, mas um leve tremor na voz ao dizer: “meu pai morreu”. Não chorou naquele dia. Para que a mãe, Zenilda, 45 anos, que ameaçou suicidar-se com remédios, “não chorasse em dobro”. O filho também teve seu inferno particular. Sozinho no quarto, o pensamento de acabar com a própria vida não saía da cabeça. “Eu fiquei com a sensação de que a culpa daquilo tudo era minha, de que meu pai tinha morrido porque eu pedi a ele uma bicicleta. E ele fez aquela coisa ruim pra conseguir”.
Givaldo já havia assaltado outro carro-forte e passara vinte anos preso. Depois que ele morreu, Zenilda e os seis filhos venderam os móveis para sobreviver. O barraco em que viviam desabou com as chuvas e os Cruz mudaram-se para um imóvel do programa Minha Casa Minha Vida, na favela Bate Facho, no bairro popular Boca do Rio, na orla de Salvador. O sustento vem do benefício do Bolsa Família e de doações. De madrugada, Lauro também ajuda a mãe a fazer lanches para vender na rua. O menino permaneceu analfabeto até os onze anos, mesmo frequentando a escola. Repetiu o 2º e o 3º anos na rede pública e acreditou que era burro. “Eu tentava focar nos estudos, mas alguma coisa não encaixava”, conta.
Foram os programas de alfabetização e aceleração do aprendizado*, adotados na escola municipal Julieta Calmon, na Boca do Rio, que devolveram a autoestima ao garoto de corpo afilado e cara de doutor, olhar sério por trás dos óculos de aro preto, um dente que nasceu no lugar errado e que dá graça ao riso carnoso e envergonhado. Ao evoluir nos estudos, Lauro ressignificou a tragédia familiar. Há felicidade no mundo. O recém-falecido escritor Amós Oz, militante da paz entre árabes e israelenses, diz em um de seus livros que o sofrimento não é o oposto da felicidade, e sim “a saída estreita da qual passamos encurvados, arrastando-nos entre urtigas, à procura da clareira na floresta silenciosa banhada pelo luar de prata”. Oz pode ser um autor que Lauro goste de ler no futuro.
O menino baiano colocou-se o desafio de ler e escrever porque via a professora atrasar a aula para alfabetizá-lo. Além do mais, havia na turma quem chegasse com mais fome do que Lauro. Se os outros aprendiam, ele também podia. Tomou gosto em fazer contas e ficou fascinado pela porcentagem. Passou a calcular os descontos oferecidos nas lojas para uma bicicleta com pagamento à vista. Ainda não desistiu dela.
Hoje com doze anos, Lauro transformou a dor em filosofia. “Um dia um leão ficou preso numa armadilha na floresta e um camundongo conseguiu ruir a corda para soltar ele. O leão nunca mais viu o camundongo como impotente. A força não vem do tamanho, a força vem de onde menos se espera”. A vida não andou do jeito que Lauro queria. Mas ele está dando seu jeito. Quer se formar advogado ou administrador de empresas, enquanto muitos amigos na favela abandonaram os estudos para entrar no tráfico.
Com os livros, descobriu a capacidade de superar a sua imanência. Não é isso a filosofia? “Não sei como ainda acontece discriminação porque o Brasil é uma mistura de raças. As pessoas não aceitam a realidade do seu corpo e do outro. O lanche da escola é feito com alimentos que têm o custo mais barato. Pintam o chão e não melhoram o ensino, que faz a gente crescer. Meu bairro não tem quadra de esportes e as traves do campinho de futebol sumiram.” Assim, sem fôlego, Lauro agora presta atenção à sua volta. Ergue os ombros e a cabeça para dizer que quer reformar a escola, o bairro, a cidade, o país e o mundo. “Reformar não é só mudar o ambiente, é mudar nosso jeito de pensar”.
Por trás de Lauro, há uma professora. “Ela é meu amuleto da sorte, me conduz e sabe o valor que eu tenho”, diz o menino, emocionado. Leonísia da Rocha, 35 anos, pilotou uma turma de quinze crianças repetentes, entre 12 e 14 anos, algumas sem sequer reconhecer as cores. Nas famílias, havia casos de prostituição, espancamento, alcoolismo, uso de drogas, homicídios e violência de gênero. Na escola rodeada por favelas, os alunos de Leonísia tinham aprendido apenas a emudecer. “A pessoa tem que ter fibra. Ou eu abraçava aquela turma ou deixava de lado”, resume a educadora. Além de ensinar, foi psicóloga, médica, mediadora de conflitos e merendeira. Quando só tinha mingau e biscoito na Julieta Calmon, Leonísia levava comida de casa para os estudantes. Quando o menino urinou pus, ligou para dar uma bronca na mãe. Convocou pais que nunca tinham dado as caras na escola. Deu à turma esperança.
Turma da professora Leonísia. Crédito da imagem: professora Leonísia da Rocha/ Divulgação |
Em 2018, 14 alunos de Leonísia foram “acelerados” e aprovados para os 6º e 7º anos, muitas vezes exigindo que a professora confrontasse a escola. “A rede pública é muito limitada porque os profissionais são efetivos e se acomodam. E o ensino tem que ser diversificado. Se não dá certo de um jeito, tem que fazer de outro. A escola por exemplo nunca teve feira de ciência. Eu consegui montar uma com os alunos pela primeira vez e disseram que não podia, que ia ocupar o pátio, ia sair da rotina….”, relata.
Com salário de R$ 3 mil como professora pós-graduada em gramática e direito – o mesmo que ganha uma diarista nos centros urbanos -, Leonísia se prepara para fazer a prova da Ordem dos Advogados do Brasil. Deu entrada no parcelamento de um Agile usado, da Chevrolet, seu primeiro carro, mas agora só anda de ônibus. O marido, professor de educação física desempregado, pegou o Agile emprestado para trabalhar como motorista de Uber.
Leonísia ainda estava na barriga da mãe quando o pai abandou a família de seis filhos. Já passou fome, catou resto de feira para comer, vendeu pipoca e queijo na praia para ajudar a mãe que, por sua vez, vendia acarajé. Entre os alunos, a professora que também estudou em escola pública “é nóis, é beco, é favela”. “E hoje estou aqui. Abracem a oportunidade porque está na hora de vocês”, diz ela. Leonísia inscreveu Lauro em um programa de bolsa de estudos e ele foi aprovado. Em 2019, ele irá cursar uma escola particular de Salvador. “A farda eu dou. Agora estou cobrando da mãe para correr atrás de quem banque os livros”. Tarefa cumprida.
*Programas Se Liga e Acelera Brasil, implementados pelo Instituto Ayrton Senna em parceria com o Instituto Neoenergia e a rede municipal de Salvador, Bahia.
Fonte: Observatório do Terceiro Setor